O encanto perigoso pela coroa: a romantização da realeza e o esvaziamento das conquistas sociais
- JP Agenda
- 6 de set.
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Atualizado: 8 de set.
Fenômeno do "princess treatment" entre jovens revela consumo estético que esvazia lutas históricas por igualdade e autonomia

Não há dúvida de que a estética do "tratamento de princesa" conquistou a Geração Z. Nas redes sociais, proliferam tutoriais de "princess treatment", diários de "princess life" e uma enxurrada de conteúdo que glamouriza a etiqueta, os vestidos de baile e a vida supostamente ociosa e luxuosa da realeza. À primeira vista, parece um inocente jogo de fantasia, uma fuga lúdica das pressões do mundo moderno. No entanto, sob o brilho do ouro e do veludo, esconde-se uma ironia profunda e perigosa: a fascinação por um símbolo de opressão, desigualdade e submissão, justamente por uma geração que herdou os frutos de séculos de lutas contra esses mesmos valores.
A popularização desse ideal é, acima de tudo, uma vitória do capitalismo sobre a consciência histórica. Ele vende a ideia de princesa como um produto: é sobre consumo, aparência e um individualismo exacerbado. Ser uma "princesa" moderna significa merecer o melhor, ser servida e existir em um universo onde os próprios desejos são centrais. O que foi vendido como "empoderamento" ("exija seu tratamento de princesa") não passa da velha narrativa do consumo como forma de identidade, agora revestida com um novo aesthetic. A coroa, outrora um símbolo de poder divino e hereditário, foi reduzida a um acessório de influencer.
O paradoxo mais gritante reside no apagamento histórico que esse fascinação promove. Por quais direitos as mulheres e outras minorias lutaram nos últimos séculos? O direito ao voto, à propriedade, ao divórcio, à educação, ao trabalho digno e à igualdade perante a lei. Essas conquistas monumentais foram arrancadas à força de estruturas de poder que a realeza personifica. As monarquias históricas foram construídas sobre pilares de estratificação social rígida, onde o valor de uma pessoa era determinado pelo seu sangue e não pelo seu mérito ou humanidade. A "princesa" de outrora era, antes de tudo, uma peça no tabuleiro político, um objeto a ser negociado em casamentos arranjados para consolidar alianças e poder. Romantizar essa figura é apagar a realidade da opressão sistêmica que ela representava.
Ao elevar a "princesa" a um ideal de vida, diminui-se simbolicamente a magnitude dessas conquistas. A luta pela autonomia corporal, pelo direito de escolher a própria vida e de não ser propriedade de um pai ou marido, é esvaziada quando o sonho de consumo se torna a estética da dependência luxuosa. A narrativa do "merecimento" individual ("eu mereço ser tratada como princesa") substitui a luta por direitos coletivos ("nós merecemos igualdade e justiça"). É um retrocesso disfarçado de autocuidado, trocando a consciência crítica por uma fantasia de passividade adornada.
Em um mundo que clama por mais igualdade, justiça social e mobilidade, a nostalgia por uma era de castas imutáveis é não apenas anacrônica, mas também reacionária. A Geração Z, herdeira de uma era de informação, tem as ferramentas para olhar para além do brilho do filtro e enxergar a coroa pelo que ela sempre foi: um símbolo de poder concentrado, privilégio não meritocrático e a negação da democracia.
A verdadeira coroa a ser desejada não é a de ouro e pedrarias, mas a da autonomia conquistada a duras penas. A verdadeira realeza não é herdada, é construída através da educação, da independência financeira, do pensamento crítico e da luta por um mundo mais justo. É hora de trocar o conto de fadas por uma narrativa de empoderamento real – aquele que não é servido em uma bandeja de prata, mas é conquistado com as próprias mãos.
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